APOSTOLADO DA TRADIÇÃO CATÓLICA

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domingo, 22 de janeiro de 2017

O que é mundo?


O termo é polivalente e mais de um teólogo já analisou os seus
vários sentidos. Procuremos, aqui, entre os vários sentidos, qual é
o que designa um inimigo da alma e da Igreja. De início tomemos o
sentido metafísico que designa o universo criado. Nesse sentido o
mundo é intrinsecamente bom, e cairíamos em maniqueísmo pleno
e perverso se apontássemos alguma essencial maldade no ser das
coisas. Essa perversidade nos levaria a imputar a Deus alguma maldade,
ou a dividir a Onipotência de Deus em dois hemisférios, mal
e bem, luz e trevas, como na antiguidade pagã muitas vezes se fez.
A obra de Deus é boa, e Deus mesmo nos diz que imprimiu
em sua Criação a marca de sua verdade e sua bondade; mas o mundo,
que é bom, intrinsecamente bom, não tem nem pode ter a plenitude
do ser e a plenitude da bondade que só Deus possui. O mundo
bom, ordenado, belo, maravilhoso, tem entretanto a miséria de toda
a criatura, a composição de potência e ato, de ser e de não ser, e
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por isso é vulnerável ao mal, que não é um ser, mas apenas a privação
de um bem exigido pela natureza das coisas. Aqui começa a
história da miséria e da fragilidade do mundo, mas ainda não começou
a da inimizade do mundo.
Tomemos agora o mundo do homem, e mesmo o universo, depois
do pecado de Adão. Ainda não é este o mundo inimigo, porque
é a ele, assim mesmo manchado e ferido, que se aplica a palavra
de misericórdia de Deus: "Deus tanto amou o mundo que lhe deu
seu Filho único" (Jo. III, 16). E também: "Eu não vim para condenar
o mundo, mas para salvá-lo" (Jo. XII, 47). Já aqui, entretanto,
se observa uma atitude nova e tensa que caracteriza fundamentalmente
a vida cristã. Em relação a esse mundo, em si mesmo
bom, mas marcado pelo pecado do homem e por uma senectude que
o levará a passar, Jesus nos adverte que estamos no mundo, mas
não somos do mundo. E aqui chegamos ao dualismo mais contrastante
e mais importante da relação Igreja-mundo, e ao ponto mais
agudo da significação do termo "mundo". Se nós e a Igreja estamos
no mundo, mas não somos deste mundo, temos de procurar em
outro mundo nosso lugar, nossa pátria verdadeira. "Meu Reino não
é deste mundo", disse Jesus a Pilatos, "se meu Reino fosse deste
mundo, meus servidores teriam combatido para impedir que eu fosse
entregue aos judeus; mas o meu Reino não é deste mundo"
(Jo. XVIII, 15-17).
Há então na obra de Deus uma criação de todas as coisas visíveis
e invisíveis, e um desdobramento, ou uma nova criação na
ordem da salvação. Já no Antigo Testamento encontramos vários
anúncios do outro mundo ou de uma nova criação: "Não cuideis
das coisas antigas, eis que vou realizar algo de novo" (Is. XL,
15-17). Seria espantosamente pueril imaginar que Isaías profetiza
novidades horizontais da história e que as "velhas coisas" são o
Concílio de Trento, o latim, o gregoriano, etc, etc. ao passo que as
"novas" seriam as coisas depois do Concílio Vaticano II, e até quem
sabe? — depois da revolução na América Latina.
É na terceira parte do livro de Isaías (LVI a LXVI) que o
anúncio da nova criação atinge seu esplendor, ou melhor, atinge
o máximo esplendor que era possível neste ponto adventista da Revelação.
Fala-se aí expressamente da criação de um novo céu e de
uma nova terra. A magnificência de Sião é descrita como o raiar
de uma nova manhã de criação.
O excessivo dualismo, que parece ameaçar a ortodoxia, se integrará
melhor, não na visão de duas criações, mas na consideração
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de dois tempos ou de dois atos da mesma criação. Há realmente no
ato criador de Deus o que nos atrevemos a chamar de dois atos da
mesma criação, ou de dois tropismos — o primeiro, que tem caráter
de projeção, tira as coisas do nada, as atira e as entrega às suas
próprias naturezas e operações, "operado sequitur esse", e o segundo,
que tem caráter de vocação, chamamento de todas as coisas,
como se todas as coisas criadas devessem ser, desde já, marcadas,
orientadas, polarizadas para a Glória. À imitação do que se passa
na intimidade insondável da Trindade Santíssima, toda a criação,
de certo modo, sai do Pai e volta ao Pai: "Deus criou todas as
coisas para si" (Prov. XVI, 4).
No que concerne aos seres dotados de inteligência e vontade
livre, o chamamento de Deus e a nova criação mais próxima de sua
intimidade constituem a ordem da Salvação, motivada e tornada ainda
mais próxima de Deus e mais bela pela resposta que Deus deu ao
pecado da criatura: "Onde abundou o pecads» superabundou a graça"
(Rom. V. 29).
Estamos habituados a pensar na graça em termos adjetivos,
como quem pensa numa qualidade que apenas realça ou renova algo
de subsistente. Para nós a graça é efetivamente um habitus que qualifica
a alma e supõe a natureza. Sim, supõe a natureza, mas de tal
modo a transpõe ou a transporta para outras oitavas de sobrenatureza
que mal conseguimos bem avaliar a força da novidade em que essa
qualificação nos insere, em união com o Cristo ressuscitado, à direita
do Pai. Dificilmente assimilamos a ideia de estarmos, pela
graça de Deus, desde já, supernaturalizados na pátria eterna, e desde
já substantivamente renovados.
É no Novo Testamento, que por isso mesmo se chama Novo,
que a revelação da nova criação ganha plenitude. Não é metaforicamente,
literariamente, que São Paulo diz: "Quando alguém está
em Cristo é uma nova criatura, e então pode dizer: o antigo desapareceu,
vede! tudo é novo!" (2 Cor. V, 17). Mas o ponto mais alto
deste anúncio excessivo, para essa desmesurada Esperança, para
essa medida cheia, calcada, recalcada e transbordante da beatitude
prometida, está nas últimas páginas do último livro inspirado:
Vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a
primeira terra tinham desaparecido, e o mar já não existia. E vi a
cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, do lado de Deus,
ataviada como esposa que se enfeita para o esposo. Ouvi uma grande
voz que descia do trono e dizia: — É aqui o Tabernáculo de Deus entre
os homens, eles serão seu povo, e o próprio Deus estará com eles; en-
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xugará as lágrimas de seus olhos, e não haverá mais morte, nem luto,
nem dor, porque as primeiras coisas terão passado... E aquele que
estava no trono disse: — Eis que todas as coisas faço novas". (Apo
XXI, 1-5).
Por esses textos vê-se que o termo "novo" deve ter para nós
um sentido tão alto e tão santo que o resguarde do uso vulgar e estúpido
que dele fazem os chamados "progressistas", dilapidadores
das coisas sagradas.
Mas não é ainda no sentido de velho mundo que o mundo é
inimigo da Igreja. Para o cristão esse pobre velho mundo ainda é
o lugar e a ocasião que se oferecem para completar, em sua peregrinação
e no Corpo Místico de Cristo, o que faltou em Sua paixão
(Col. I, 24). Nesse sentido, amamos o mundo, obra de Deus, e
reduplicadamente amamos o mundo em que Jesus caminhou e caminhará
conosco até ,a consumação dos séculos; e amamos com
entranhas de misericórdia e especial dileção os pobres de todas as
pobrezas, que são muitas, e o horror que ganharmos ao pecado e ao
mal multiplicado no mundo será mais uma forma de amor pelos
atropelados e pelas vítimas, e até pelos autores do mesmo mal.
Pode ser que, por desfalecimento do amor-próprio (carne), ou
por tentação do demónio, nos deixemos muitas vezes colar no visgo
desse velho mundo que não é o Reino de Deus, mas nesse caso não
é o mundo o agente inimigo que nos desvia de Deus: é Satã ou a
carne.
Quando é, então, que mundo significa inimigo da Igreja e da
alma? O próprio Senhor Jesus nos responderá: "O mundo os odeia
porque eles não são do mundo, como Eu não sou do mundo"
(Jo. XVIII, 14-16). E assim vemos que mundo inimigo é aquela
parte ou aquela manifestação que se organiza como anti-Igreja, é o
mundo militante que move guerra ao Reino de Deus, ao "outro
mundo" já aqui e agora começado na vida da graça. Esse mundoinimigo,
formado por correntes históricas animadas de soberba e aceleradas
neste século por um febril desespero, odeia os cristãos por
causa do novo absoluto, que se realiza no Cristo, e que esse mundo
rejeita; sim, odeia-os por causa de sua condição peregrina, e tenta
por todos os meios secularizá-los, isto é, arrancá-los do Reino de
Deus para naturalizá-los neste mundo.
E aqui cabe a pergunta: e a carne? O que é carne, como inimiga
da Igreja e da alma? Já vimos em Dois Amores, Duas Cidades
(AGIR, 1967) que o termo carne, do binómio paulino carne-espírito,
segundo Santo Agostinho e Santo Tomás, não designa a parte
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corporal do composto humano, designa antes o homem todo na medida
em que esse homem toma a atitude de querer ser a sua própria
lei ou de vivere secundum seipsum, com aversão e desprezo pela
vontade de Deus. Será sinónimo de vontade-própria ou de amorpróprio
no sentido mais espiritual e profundo do termo. É nessa
inflamação do eu-exterior que o mundo-inimigo e o Demónio encontram
a brecha para a derrota das almas. Mas é preciso lembrar
que, nestas linhas, o termo carne se aplica, não apenas no plano
da moral particular e individual, mas no plano de toda uma civilização
que fomenta e estimula a vontade de poder, a vontade de
autonomia, a vontade de egoísmo, a vontade de soberba, dando-lhes
nomes de novo humanismo. A obra anteriormente citada ocupou-se
desse drama de toda uma civilização que deixou de ser cristã; e a
obra que nestas últimas páginas encerramos, na sua maior parte,
tenta mostrar o triste privilégio que têm os habitantes deste século:
estamos de camarote diante do planisfério das consequências. Vimos
alargar-se a corrente histórica inimiga da alma e da Igreja, e para
nossa maior confusão vimos a carne inimiga dos próprios membros
da Igreja, de alto a baixo, dos mais inteligentes aos mais visivelmente
parvos, trabalhar na obra que o próprio Papa chamou de
autodemolição da Igreja, obra que não seria possível se os outros
inimigos não contassem com essa brecha que é exterior à Igreja,
e que permite essa catástrofe que parece vir de dentro da Igreja,
porque vem de seus membros, e mais especialmente de son personnel,
como diz Maritain no seu livro último, UÊglise du Christ.
O que nos assusta de modo particularmente agudo é o fato de existir
em torno da Igreja um mundo que enaltece a carne, e o fato ainda
mais grave de existir no seio da Igreja um número alarmante de
levitas que precisamente se gabam de ser servidores do mundo, da
carne, e por que não do Demónio? Nas páginas deste livro vimos
o mal que fizeram à Igreja as correntes históricas que a soberba
humana organizou para dispensar os favores de Deus, dos anjos
e dos santos.
A principal característica dessa torrente histórica que, para nossa
vergonha e infinita tristeza, conseguiu aliciar combatentes, guerrilheiros,
milicianos do demónio no próprio mundo católico, é precisamente
o desprezo do arremate mais belo da obra de Deus. Sim,
desprezo do novo mundo, desprezo da Nova Jerusalém, desprezo
de um Deus poderoso e enxugador das lágrimas dos homens. Em
nome de quê?
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Em nome de um otimismo confiante nos recursos humanos, na
ida à Lua, e nos transplantes de corações logo rejeitados, em nome
de um novo humanismo que ousa dar o qualificativo de novo ao capricho
inconstante dos homens, em nome do nada e da vaidade das
vaidades, perseguição de vento, o caudal de erros se alargou nesta
estuário de disparates que inunda o mundo e produz na Igreja devastações
incalculáveis. Que nome daremos ao mal deste século?
Este: DESESPERANÇA.
Ei-lo, o mal de nosso tormentoso e turbulento século que ousou
horizontalizar as promessas de Deus transformadas em promessas
humanas. Que ousou tentar a secularização do Reino de Deus que
não é deste mundo. Ei-los os escavadores do nada a construir em
baixo-relevo, en creux, a nova torre de Babel. Esperantes às avessas,
eles querem fazer revoluções niilistas, querem voltar ao zero,
querem destruir, querem contestar, rejeitar, querem niilizar. E se
chamam "progressistas".
No século anterior as agressões e traições convergiram contra
a Fé, como se viu na crise modernista que São Pio X represou.
Tremo de pensar que o próximo século será o do DESAMOR. Perguntando
ao mar, às árvores, ao vento, o que querem esses homens
que se agitam e meditam coisas vãs, parece-me ouvir uma resposta
de pesadelo. Eles querem produzir uma sinarquia, uma espécie de
unanimidade, uma espécie terrível de paz e bem-estar. Qual?
Querem chegar ao PECADO TERMINAL.
"Porque por causa de um só homem o pecado entrou no mundo,
e com o pecado a morte". ( . . . ) "mas se pela falta de um só
sobre todos caiu a condenação, pela justiça de um só a todos virá
a justificação que dá a vida. ( . . . ) E onde abundou o pecado superabundou
a graça." (Rom. XVIII, 21)
Qual será o sentido da história marcada neste século? Só pode
ser a do tríptico que venha completar, no estilo na tríade hegeliana,
o díptico paulino formado pelo primeiro e segundo Adão. No quadro
que o apóstolo expôs aos romanos temos de um lado Adão
com sua singularidade de vértice a condensar toda a humanidade e
a transmitir-lhe as consequências e a marca do pecado original; de
outro lado temos o mistério da redenção que, em Cristo, segundo
Adão, se oferece a todos os homens. Completa-se agora a tríade
com a síntese onde o "terceiro Adão" será o Adão-massa, a huma-
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nidade unanimizada na mesma negação, na mesma afronta simétrica
da primeira — no mesmo PECADO TERMINAL com que Satã
imagina descer o pano sobre o quinto ato do espetáculo do mundo.
Os "teólogos" da nova Igreja sonham convergências, realizações,
e afanam-se para esse happy end sonhado na Alemanha ou
na França. Por todos os meios de comunicação Satã multiplica sua
promessa de mentira coni que perdeu o homem no princípio da
História e quer perdê-lo sem remissão no fim: erit sicut dii. Desde
já falam muito no homem, na promoção do homem, na revelação
do homem, na "réussite de 1'homme", como diz o velho dominicano
Chenu, que já entrevê o fim do mundo sem guerras e sem explorações
do homem pelo homem, e nesta apoteose já entrevê uma
humanidade tornada enfim fraternal. No sonho do Pe. Chenu, não
haverá Juízo nem haverá condenações porque cada um será o único
juiz de seus atos, como já se ensina hoje nos novos catecismos.
Acordarão todos um dia com o fragor dos trovões e o luzir dos
relâmpagos do Ocidente ao Oriente, mas em vez da sonhada convergência
verão a mais terrível das divergências.
Que fazer? Lutar. Combater. Clamar. Guerrear. Mas lutar sabendo
que lutamos não somente contra a carne e o mundo, mas
contra o principado das trevas. É preciso gritar por cima dos telhados
que, se o cristianismo se diluir, se a Igreja tiver ainda menos
visível o ouro de sua santa visibilidade, se seu brilho se empanar
pela estupidez e pela perversidade de seus levitas, o mundo se tornará
por um milénio espantosamente, inacreditavelmente, inimaginavelmente
estúpido e cruel.
Roguemos pois a Deus, com todas as forças; desfaçamo-nos
em lágrimas de rogo e gritemos a súplica que nos estala o coração:
enviai-nos Senhor, ainda este século, um reforço de grandes santos,
de grandes soldados que queiram dar a vida, no sangue ou na mortificação
de cada dia, pela honra e glória de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Compadecei-vos, Senhor, de nossa extrema miséria, e sacudi
os homens para que eles saibam quem é o Senhor!
É preciso lutar; e sobretudo não desanimar quando nos disserem
que o inimigo cerca a Cidade de Deus com cavalos e carros
de combate. Ouçamos Eliseu: "Não tenhais medo porque os que
estão conosco são muito mais fortes do que os que estão contra
nós". E elevando a voz Eliseu clamou: "Senhor, abri-lhes os olhos
para que eles vejam. E abrindo-lhes os olhos o Senhor eles viram,
em torno de Eliseu, a montanha coberta com cavalos de guerra e
carros de fogo." (II Reis, VI, 16)
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E para bem encerrar estas páginas tão sofridas, ouçamos depois
do Profeta a voz do grande santo Papa que pusemos no frontispício
desta obra. Ouçamos a voz de São Pio X, que desde o princípio
deste século de desesperança clamou para despertar as indiferenças,
quebrar os orgulhos e pelo santo temor preparar o caminho
da Salvação:
Qual seja o desenlace desse combate contra DEUS empreendido
por fracos mortais, nenhum espírito sensato poderá duvidar. É certamente
fácil, para o homem que quer abusar da liberdade, violar os
direitos e a autoridade suprema do Criador; mas ao Criador caberá
sempre a vitória. Digamos mais: a derrota se aproxima do homem
justamente quando mais audaciosamente se ergue certo do triunfo. E é
disto que Deus mesmo nos adverte: "Ele fecha os olhos para os pecados
dos homens" como que esquecido de seu poder e de sua majestade, mas
logo depois desse aparente recuo, "despertando como um homem cuja
força a embriaguez aumentara, ele esmagará a cabeça de seus inimigos,
a fim de que todos saibam "que o Rei da terra inteira é Deus" e que
"os povos compreendam que não são senão homens."

Texto Extraído: do livro O seculo do nada .
Gustavo Corção